sábado, 25 de abril de 2020

"Outrem ou ou-trem?"



Se há algo que nos tira o chão dos pés e nos deixa com cara de paisagem, é quando um momento desconcertante derruba uma certeza que temos.

Durante alguns anos apresentei um programa de rádio, sendo que há muitos anos também, mais precisamente desde a infância, falar com desenvoltura para públicos diversos e com raríssimos erros em língua portuguesa, era comum e habitual para mim.

Ao optar por uma carreira profissional, escolhi jornalismo como uma carreira aparentemente óbvia. Com alguns dias de atraso, cheguei em minha primeira aula. Era fascinante, meu sentimento era de estar no lugar certo, sentia-me confortável, feliz e confiante na escolha que eu havia feito.

Em pouco tempo, fui convidado a apresentar um evento dentro da universidade que fazia parte de nossa grade curricular e senti uma alegria indescritível quando fui reconhecido no encerramento do projeto, como destaque entre os estudantes de comunicação da instituição, por haver desempenhado com êxito o que tinha sido proposto. Um auditório repleto de estudantes e professores, alguns doutores em suas áreas, ficaram de pé e me aplaudiram demoradamente. Para um calouro aquilo era uma espécie de estadia no Olimpo.

Se eu parasse o texto aqui talvez você pensasse que a minha estadia no ‘panteão’ foi livre de percalços... bem... não foi.

No período de produção do projeto mencionado, eu tinha que apresentar um programa de rádio ao vivo com uma colega de bancada. Cheguei com uma autoconfiança de aspecto inabalável por aquela experiência em rádio que mencionei no início deste texto. Eu achava que sabia fazer aquilo, até o momento que meu professor me provou o contrário, apontando erros que eu não enxergava em minha atuação. Lembro que fui da euforia ao sentimento de estranheza, pois para mim, era habitual ouvir que eu era bom no que fazia. Não que eu tenha sido desestimulado por meu professor, um grande jornalista, mas porque ele apontou o que eu parecia não querer enxergar.

Em outro momento, numa aula de língua portuguesa, minha professora pediu para que eu fizesse a leitura de um texto clássico. A narração transcorria muito bem até tropeçar numa palavra simples mas que não fazia parte do meu vocabulário cotidiano: ‘outrem’ saiu com uma pronúncia quebrada, algo como ‘ou-trem’ e essa única palavrinha parecia ter derrubado a leitura promissora que até então eu fazia. Antes que minha professora me corrigisse, uma colega que hoje apresenta um programa numa grande emissora de TV, apressou-se na correção com um divertido sorriso.

Situações curiosas e até comuns como essas tem me feito lembrar ao longo do tempo, que nós devemos caminhar sempre sedentos de conhecimento, tendo a humildade como companheira e entendendo que há múltiplos modais de conhecimento. Admiro homens e mulheres que embora sejam reconhecidos como experts em suas áreas de conhecimento, entendem que há prazer em dividir conhecimento e não em estocá-lo.

Houve um tempo em que eu não entendia que, más experiências podem ser grandes fontes de aprendizado, hoje porém, procuro extrair o máximo de todas as situações vividas, para que o tropeço, quando inevitável, se dê em outras pedras... não as mesmas.

sábado, 18 de abril de 2020

Prazer e dor à mesa



Era 2001, quando num período de carnaval, viajei com um grande grupo de amigos ao Vale do Ribeira em São Paulo, região que faz divisa com o Paraná. Participávamos de um retiro da folia, em meio a uma natureza exuberante na cidade de Sete Barras. Naquela pequena comunidade, era habitual ver os moradores em seu cotidiano: homens ostentando chapéu de palha e conduzindo seus cavalos, donas de casa “janeleando”, crianças correndo molhadas de um refrescante e divertido banho de rio.

Lembro das coisas que fizeram daquele lugar, um bom motivo pra voltar mesmo depois de tantos anos: iogurte caseiro feito com leite da fazenda, em nada comparado com o que se compra em supermercados, céu limpo de poluição permitindo uma nítida imagem da Via láctea com um número incrível de estrelas, impossíveis de ver na região metropolitana em que nasci, o frescor das doces e frescas águas de rio tão desfrutadas por aquelas crianças serelepes, o cheiro de mato e ar limpo, o silêncio noturno quebrado apenas ocasionalmente pelo ruído de alguns poucos carros e a cadência da marcha de cavalos e seus cascos ao solo.

Mas na vida, nada parece fugir ao fato de que tudo tem dois lados e naquele sossego de interior, após andar por trilhas que margeavam um belo e caudaloso rio, fiquei frente a uma cena de horror, que embora seja comum na cadeia alimentar humana e no dia a dia de homens do campo, me causou profunda tristeza, repulsa e senso de impotência. Com as patas amarradas por grossas cordas e um olhar de horror, um novilho era mortalmente golpeado por uma faca imensa e afiada, debatendo-se e tremendo em uma imensa poça de sangue. O assassino, sim, assassino não há outro nome, parecia se divertir junto a outro grupo de companheiros, com o único objetivo de que o animal morresse logo para que eles obtivessem o que queriam, e olharam a mim e a meus amigos que naturalmente se assustaram com a cena, como se fossemos fracos e eles fortes pela consumação daquela horrenda tarefa.

Hoje essa prática ainda é comum pelo mundo afora, mas é pequena, comparada a grande indústria agropecuária, que autoproclama um abate rápido para o gado de corte, uma alardeada “humanidade” para com os deliciosos e rentáveis animais de seus rebanhos. Sabemos que há muita propaganda e nem sempre grande efetividade no que se diz por parte desses grandes industriais.

O fato é que nos banqueteamos com o cadáver de animais, dos mais diferentes portes e raças sob o pretexto de que o corpo humano depende, desse tipo de alimentação. Não vou entrar na discussão do certo e errado, e sim na reflexão que me permite este blog e a livre escrita que materializa ideias e opiniões.

Não sou vegetariano, mas por muito tempo adotei o vegetarianismo e confesso admirar essa forma de viver e comer. A sensação de corpo limpo de impurezas e vitalidade, são notórias, ao contrário do que pensam muitas pessoas que pensam que vegetarianos come apenas ‘mato’. Não sinto falta de carne de nenhuma espécie, embora ocasionalmente apareça no cardápio.

O presente texto, visa apenas uma reflexão, longe de pretender moralizar o discurso ou incomodar a você meu caro leitor, fala-se aqui apenas da forma como observo a pauta em questão.

Penso que nenhum prazer à mesa justifica a dor de uma vida inocente. Minhas resoluções nesse sentido, seguem em curso.

sábado, 11 de abril de 2020



Navio na neblina




Era o começo da década de 1990, minha família e eu estávamos voltando da visita que fizemos, em um certo dia, a uma tia minha. Morávamos em Guarujá e vindos de São Vicente, precisávamos navegar em uma barca que fazia a travessia do canal do estuário entre uma ilha e outra.

A travessia era costumeira, sendo feita ainda hoje, da mesma forma que há 30 anos. Mas algo habitual e rápido como esse percurso, tornou-se uma aventura tensa e perigosa, trazendo-nos momentos angustiantes.

A noite era nublada, mas não esperávamos uma repentina e intensa cerração, que desceu como uma imensa e pesada cortina a frente da embarcação, obrigando o comandante a parar a navegação. Com o desligar dos motores, a ventania balançava a barca, fazendo com que uma certa quantidade de água invadisse o primeiro piso, eu conseguia sentir os meus batimentos cardíacos resultantes do medo daquele momento. Havia o temor de que uma colisão com outra embarcação pudesse acontecer.

Alguns instantes depois, o receio parecia se materializar e assustadoramente um navio atracado ao cais, apareceu bem a nossa frente, fazendo com que o desastre parecesse inevitável. A ventania tinha tirado a nossa embarcação da rota correta e nos levado em direção a um imenso cargueiro transcontinental. Sentimos, para o nosso alívio e das dezenas de pessoas que estavam conosco, o ronco dos motores que com perícia e agilidade, foram acionados pelo comandante a tempo de nos desviar do impacto que parecia certo.

Não muito tempo depois, a neblina cedeu e pudemos então chegar ao nosso destino.

Que alívio sentimos ao pisar em terra firme, embora a memória daqueles instantes parecessem não se dissipar como a neblina que nos causou pânico.

Desse acontecimento fiz uma analogia com outras circunstâncias da vida: em nossa trajetória temos sempre a ideia de que decidiremos ir de um lugar a outro, de uma situação a outra, de uma decisão a outra, sem ponderar a ocorrência de possíveis intempéries. Quando estas aparecem, o medo parece ser a única coisa possível pois o otimismo parece não existir quando o fatal parece assumir o lugar do vital.

É bem verdade que muitas tempestades e densas neblinas, abatem e levam a pique muitas embarcações, mas nem sempre será a nossa. Sendo assim, voltar a navegar pode não ser das coisas mais fáceis a se fazer, mas é possível, porque só assim é possível chegar ao outro lado.

Uma história contada por meu pai

  Acho interessante quando, mesmo em meio a era da internet de alta velocidade, com todas as inovações por ela trazidas, pais ainda contam ...